Certa vez, eu li uma frase no mangá Girl Friends (Milk Morinaga) que acabou me marcando bastante. "Realmente admiro a ideia de um amor que seja tão forte que supere as barreiras de gênero". A Mariko disse essa frase em algum ponto de sua história de autodescoberta. Admito que esse ideal é algo que me atrai bastante em obras queer de romance. No entanto, quando falamos de histórias yuris, que é um gênero que por muito tempo ficou para trás em relação às obras BL, esse ideal nem sempre representou algo positivo. Lá no comecinho da ascensão do gênero, por volta dos anos 70, discussões sobre liberdade feminina e sexualidade lésbica ainda eram assuntos muito marginalizados e banalizados. Os primeiros mangás yuris frequentemente eram carregados de estereótipos voltados para agradar as fantasias do público masculino. Com isso, a ideia de um amor em que a ideia comum de gênero não era o mais importante, se tornou uma ferramenta narrativa para que as personagens nunca precisassem terem uma inclinação bem definida em relação à própria sexualidade. Algo como uma fase, uma paixão por alguém que por acaso é do mesmo gênero, ou algo mais trivial.
Quem acompanha yuri com uma certa frequência, e experimenta obras de várias épocas diferentes, conseguirá perceber bem que esse é um gênero que evolui cada vez mais. Desde uma obra revolucionária como Shoujo Kakumei Utena, até um obra com uma estética mais voltada pro moe moderno, como o já citado Girl Friends, é perceptível como essas obras se tornaram mais abertas a abordar todo tipo de temas. Claro, é um gênero bem recente, então ainda é fácil encontrar obras com esses clichês de antigamente. Isso é algo que vale pra qualquer gênero narrativo. No entanto, obras yuris e BLs já evoluíram o suficiente pra essa ideia de um amor que transcende a barreira de gênero poder existir sem precisar ser usada como uma ferramenta pra esconder algo que as pessoas deveriam ouvir. Em uma obra como Yagate Kimi ni Naru, por exemplo, dá pra se pensar que a Yuu se apaixonou pela Touko por ela ser a Touko. YagaKimi é uma obra bastante sutil, mas o mangá fala de sexualidade de uma maneira magistral. A sexualidade da Yuu não é algo definido. E isso em si é o que faz essa ideia do amor ser tão legal na obra. Independente da Yuu ser lésbica, bi, pan ou alguma outra das muitas possibilidades, ela é do tipo que precisa primeiramente se apaixonar pela pessoa. Por isso, ela se apaixonou pela pessoa Touko, mas o fato da Touko ser uma garota, continua sendo algo muito importante, também. Então, obras como YagaKimi usam essa ideia, não para fugir do tema, mas sim para falar franca e abertamente sobre o tema. A ideia de um amor que transcende a barreira do gênero pode ser apenas isso, um ideal extremamente romântico que não deve ser usado pra negar a importância do gênero e da sexualidade das pessoas por quem nos apaixonamos, e sim para afirmar que isso não deve ser visto como uma barreira.
Então, em 2021 nasce uma desenvolvedora americana de games para Android chamada NomnomNami, que já criava jogos muito antes disso. Uma desenvolvedora independente voltada para a criação de visual novels com temáticas de amor entre mulheres. Eis que, em 2016, esse grupo, ainda antes de ser uma desenvolvedora profissional, criaria uma VN para o NaNoRenO (projeto de criação de VN indies). Eis então que nascia o jogo que elevava a ideia de amor romântico citada nos parágrafos acima. Nascia her tears were my light, uma história de amor que rompe as barreiras do tempo, do espaço, do vazio e da criação do universo.
her tears were my light é uma curta história de amor entre a personificação do tempo e do espaço. Ao todo, a história tem 3 finais. É possível completar todos os finais facilmente em menos de 40 minutos. É uma história bastante curta, mas nem por isso deixa de ser complexa. Pra chegar ao final verdadeiro, onde o Tempo ama tanto o Espaço quanto o Nada, é um quebra-cabeça narrativo. A história inicialmente parece simples. Uma garota, que é o Tempo, através do brilho das estrelas conhece outra garota, o Espaço. O Espaço se sente constantemente solitária, e sempre que ela chora, suas lágrimas se transformam em estrelas. Por ter um sentimento familiar pelo Espaço, o Tempo se apaixona muito rapidamente, então você poderia ir para o final do espaço depois de passar por alguns contratempos. No entanto, existe uma terceira garota, o Nada. Quando o Nada aparece, a fofíssima história de amor entre o Tempo e o Espaço ganha uma reviravolta inesperada. O Espaço tem esse sentimento de solidão, além de não gostar que mais alguém sinta essa mesma emoção. Então, nos finais não verdadeiros que você precisa fazer pra chegar ao original, sempre deixa um amargo sentimento de que alguém teve que ser excluída.
Essa dinâmica de tempo, espaço e nada é extremamente bem pensada. Tanto a história do Nada, quanto a história do Espaço são muito tristes. Bem resumidamente, pra não estragar sua experiência, a história é mais ou menos assim. No início, havia apenas o Nada, o que a fazia ser solitária. Então o Nada decidiu que iria mudar de "nada" para "algo". A partir do momento que algo existe, o Tempo também pôde existir. As duas, Nada e Tempo, viveram juntas e felizes por muito tempo. Mas por haver algo, o Nada perdia sua essência, e isso fazia o Tempo rebobinar para encontrar essa essência. Então o Tempo encontrava o Espaço, que tinha o poder de criar "algo" onde antes existia "nada". O Espaço era, na verdade, uma parte do Nada que decidiu criar "algo". Por ciúmes, o Nada apagava esse universo, e isso fazia tanto o Tempo quanto o Espaço recomeçarem, um ciclo sem fim. Dessa forma, a trama cria essa complexidade de uma lenda, onde, para o Tempo e o Espaço existirem, não pode haver o Nada. Ao mesmo tempo em que o Nada não consegue ser feliz com a inevitabilidade do encontro entre o Tempo e o Espaço. Mas o Espaço e o Nada são partes do mesmo ser, por isso o Tempo ama as duas. Uma história de amor para além da existência, em que o final pode não ser exatamente um final.
A jogabilidade também segue essa mesma temática. O jogador controla o Tempo, portanto, além de ficar apertando o botão pra adiantar os diálogos, como acontece em toda VN, aqui você também tem o poder de voltar para os diálogos anteriores, ou voltar desde o início, caso o final não seja o que você queria. Esse uso dos poderes do Tempo deixa o jogo bastante interessante. Tanto o Espaço, quanto o Nada e o Tempo, são personagens muito adoráveis e fofas. Por isso, o ideal é um final onde todas estejam felizes. E esse é outro ponto que vale ser ressaltado, o visual do jogo, além de ser fofo, é lindíssimo. Assim como muitas VN ocidentais, her tears were my light tem o visual inspirado em obras de animações japonesas (tem até um "quê" de MadoHomu no Tempo e Espaço). O design de personagem é extremamente fofo, cheio de expressões faciais que você veria em um anime CGDCT. E ainda tem vários pequenos detalhes que você pode perceber na arte. Coisas como o enfeite de cabelo em forma de ampulheta do Tempo, ou as estrelas nos olhos do Espaço. Pra quem gosta de jogos como OMORI e OneShot, certamente vai amar o visual dessa obra.
E claro, o romance merece o destaque final desse texto. Além da história ser muito bonita, as interações românticas entre as personagens são incríveis. As cenas de beijo e coisas assim são todas adoráveis. Além de que, é uma lenda de amor entre o tempo, o espaço e o nada. Só isso já seria incrível. Mas a combinação entre uma história muito singela, mas ainda complexa, misturado com uma arte incrível e ótimas ideias de jogabilidade e narrativa, fazem her tears were my light ser um jogo obrigatório para todos os públicos.
Se quiser, você pode apoiar her tears were my light e a desenvolvedora NomnomNami no Patreon.
Eu sou o Maviael, e sou escritor convidado aqui do Casa dos Reviewers. Se você gosta de obras de romance ou qualquer outro tipo de gênero de animes e mangás, dá uma passada lá no meu blog, o Animelancolia. Sempre escrevo bastante sobre todo tipo de obras. Não apenas animes e mangás, como também light novels, manhwas e manhuas. Tem uma variedade muito grande de textos, sendo que muitos desses posts, são focados no gênero romance, em toda sua essência. Te espero por lá!
Agradecimentos ao Luiz Guilherme (mais conhecido como ToT), pela indicação do jogo, e ao blog Casa dos Reviewers, pelo espaço e apoio de sempre.
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