Em um futuro distópico os lobos foram extintos, no entanto, essas criaturas ainda existem, disfarçadas entre os humanos. É dito que quando o mundo chegar ao seu fim um paraíso irá surgir, e apenas os lobos saberão sua localização. Kiba é um dos lobos que almeja encontrar o Paraíso, mas como chegar a um lugar que nem ao menos sabe-se sua existência?
Diretor: Tensai Okamura
A temática existencialista é frequentemente abordada em diversas obras como Neon Genesis Evangelion (1997), Ergo Proxy (2006), Casshern Sins (2008) e outros títulos, seja como foco principal ou secundário. Wolf’s Rain é mais um que se agarra ao tema, já sendo perceptível pelo protagonista Kiba (Mamoru Miyano). Segundo ele, viver sem propósito é fora do comum, e a vida tem algum significado.
Ao meu ver, mirar demais em existencialismo soaria saturante, já que o anime possui outras características que valem menção. Um desses pontos é em como Wolf’s Rain trabalha a figura do lobo.
Frequentemente o lobo é associado a crueldade, rapacidade e cobiça. Foi retratado ao longo do tempo como uma criatura maléfica pelo imaginário popular, aparecendo em diversos contos, sendo uma entidade temida, e até nos dias atuais, essa imagem é mantida. Em Wolf’s Rain o aspecto negativo do animal é constantemente comentado pelo caçador Quent Yaiden (Unshou Ishizuka), mas é na imagem de Darcia III (Takaya Kuroda) que as características ganham forma, conferindo-lhe aparência sinistra e tenebrosa. O mesmo pode ser vinculado ao Lobo Mal ou ao homem que transforma-se em lobo (licantropo).
De maneira oposta, o lobo também é simbolizado de forma nobre, principalmente para os nativos americanos, relacionando o animal aos laços familiares, com a coragem e a força. Diversas tribos os associam com a origem do mundo, por exemplo a lenda de Amaroq contado pelos Inuítes, ou pelo mito da criação da tribo Ree. Os Chippewas acreditam que os lupinos sejam guias entre o mundo material e o imaterial. Muitos indígenas tem a crença de que divindades vem a Terra na forma de lobos. É evidente que o anime bebe bastante do misticismo nativo.
Contudo, o elemento marcante da obra é em como constrói uma analogia com o Paraíso. Afinal o que é esse lugar que todos, ao menos os que creem, almejam ir? Na verdade, a denominação é bastante ampla, podendo fazer referência ao Jardim do Éden, ao lugar reservado para as almas dos justos e dignos, sendo isento de qualquer mal, ou ser o paraíso restaurado na Terra, além de muitas outras representações. Há ainda os que afirmam que Paraíso e Céu possuem a mesma definição, e os que comentam que existem diferenças entre os termos.
As personagens estão em busca de um paraíso que não sabem como realmente é. Cada um possui sua visão particular do lugar, geralmente imaginado como abundante, tranquilo e onde se possa viver pacificamente. Essa concepção não foge muito da nossa.
Aparentemente existe uma apresentação dúbia sobre o Paraíso em Wolf's Rain. Por vezes, parece haver sentido terreno para o lugar, que mais tarde, passa a ganhar significado espiritual. Tsume (Kenta Miyake) afirma que ele e Kiba irão se reencontrar no Paraíso. O diálogo me faz remeter a Lucas 23:43 (Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso). Cristo e o ladrão se encontrariam, não em corpo, e sim em espírito.
Além da crença a respeito de um lugar bem-aventurado, o anime possui suas correlações com a fé. Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos (Hebreus 11:1). Muito do que é apresentado na jornada do protagonista está envolto pelo versículo. Kiba é frequentemente questionado a respeito de sua crença, e como ele pode ter tanta certeza sobre o Paraíso? Fé é algo que não pode ser facilmente explicado ou entendido sob um olhar comum, apenas possui-se ou não.
Todavia, nem todos poderão entrar no Paraíso. Em verdade a obra nunca deixa claro se existem condições para entrar no lugar, porém, parece haver elementos interpretativos sobre a questão, refletida, principalmente, nas incertezas dos personagens.
A personagem Blue (Mayumi Asano) é uma mestiça (cão-lobo), consequentemente não pode chegar ao Paraíso, lugar destinado apenas aos lobos. Contudo, pode ser construído sentido meio ambíguo em torno da palavra "puro". O termo “puro de coração” menciona aqueles que não guardam ressentimentos ou rancor, são livres da vingança e deixam o passado para trás. Os membros da alcateia de Kiba possuem suas mágoas, e estão constantemente presos ao passado, enquanto Kiba segue em frente, almejando o futuro.
Outro ponto de discussão, esse menos evidente e até pessimista da minha parte, seria o desapego do que é mundano. Não mencionando, necessariamente, apenas o que é impuro, mas ao apego excessivo de valores e desejos, pois tudo o que é terreno é passageiro. O raciocínio me faz refletir sobre 2° Coríntios 4:18 (Não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que não se veem, porque as que se veem são temporais). Envolver-se demais com o mundo não parece prudente. O próprio Kiba, com o tempo, passa a ficar mais preso pela amizade e companheirismo, porém, deve desprender-se desses sentimentos. Em oposição, Darcia quebra sua ancorragem com o mundo.
Mas afinal, o que realmente é o Paraíso? Como ele é? Ele realmente existe? Pois, olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou (1° Coríntios 2:9).
Wolf’s Rain é propositalmente nebuloso em sua execução. A subjetividade reina na obra, levantando lacunas. Essas podem ser preenchidas pela interpretação do espectador, já que a obra entrega margem para que isso seja possível, fazendo o indivíduo elaborar diferentes concepções, algumas céticas e outras crédulas, sendo fonte para debates e discussões dentro da comunidade.
Kanch0me
Kanch0me (Arthur Felipe Valença) é formado pela Federal Rural de Pernambuco em Biologia, além de técnico em informática. Atualmente é estudante de Licenciatura. Entusiasta da indústria cinematográfica e amante de animes, mangás, HQs e videogames.
Cargo: Escritor
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