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A mineralogia por trás de Houseki no Kuni | Artigo


1. Introdução:

Houseki no Kuni ou Land of Lustrous é um mangá criado por Haruko Ichikawa, sendo publicado em outubro de 2012 pela Kodancha. Em 2017 ganhou uma adaptação de mesmo nome, contendo apenas 12 episódios.

O mangá de Ichikawa trabalha diversos aspectos, sejam simbólicos ou filosóficos. Geralmente esses são os mais debatidos e comentados pela comunidade, mas, e suas características “científicas”? Ou ao menos que possuam algum embasamento na área. Trazer e elucidar tais particularidades talvez possam agregar tanto na experiência do espectador quanto para a obra em questão.


2. A dureza de uma joia e a Escala de Mohs:

Durante a obra é constantemente referido a dureza das personagens, sendo atribuído um número para representar o quão “dura” é uma joia em relação a outra. A partir deste aspecto, cria-se uma espécie de “escada”, que necessariamente não corresponde uma segregação ou hierarquia, e sim, a uma divisão de tarefas, já que as gemas com um número mais alto (10, 9 ou 8) são a principal linha de defesa. Mas o que necessariamente o número implica, e o que realmente trata-se por dureza?

Criada pelo geólogo alemão Friedrich Mohs em 1812, a Escala de Mohs é o sistema que testa a dureza de um mineral, baseado na característica do que o material poderia aranhar ou ser aranhado, sendo esses pontos o que determinam sua posição na balança.

Para atribuir valores numéricos, os minerais são classificados ao longo da Escala, composta por 10 minerais de referência, aos quais foram concebidos valores arbitrários. Talco possui o valor mais baixo, sendo 1, e por tabela, o de menor dureza, ou seja, é arranhado por todos os minerais que estão acima e não deixa ranhuras em nenhum. O diamante, por outro lado, está no topo do sistema, representado por 10.                                                                              

Escala de Mohs com os 10 minerais de referência.


Curiosamente a sistematização criada por Mohs também é utilizado para medir a dureza de outros objetos, não sendo exclusivo para a área de mineralogia.

No entanto, a Escala de Mohs não corresponde a uma informação precisa, já que trata apenas da dureza relativa. O fato de um mineral poder arranhar o outro, ou colocando em termos mais exatos, retirar partículas da superfície de um material, não implica em dizer muito sobre a durabilidade. Um teste de dureza avalia diversos elementos, como resistência contra deformação, arranhões, abrasão, cortes, rachaduras e quebras.

Para facilitar o raciocínio, criaremos um cenário hipotético com dois objetos, uma lasca de cobre e um pedaço de vidro. O cobre tem grau 3 dentro da Escala, já o vidro corresponde ao número 5, próximo do aço. De maneira direta, o vidro risca o cobre, e o cobre não consegue escoriar o vidro. Entretanto, se arremessarmos os materiais em questão contra a parede, obviamente que o vidro vai se despedaçar, ao contrário do cobre, que ficará intacto.

Levando o pensamento para os minerais. O diamante que possui uma estrutura extremamente unida e com ligações covalentes, estando no topo do sistema criado pelo geólogo alemão, em outras palavras, o mais duro, pode ser quebrado com uma simples marretada, devido a sua baixa tenacidade.

Existe uma diferença entre os termos dureza (já comentado) e tenacidade. Esse último está relacionado com a capacidade de resistência que um mineral apresenta em se romper.

Certo. Mas onde tudo isso se insere em Houseki no Kuni? Na verdade, não encaixa, ou melhor, soa equivocado. Como assim?

                                                     
Kongo-sensei comenta sobre a fragilidade de Phosphophyllite. Capítulo 1, Volume 1.

Associar a dureza da Escala com a resistência de uma gema em quebrar-se ou não é totalmente errôneo, já que o grau de dureza, representado pelo número, não implica em demonstrar se o mineral pode ou não fragmentar. Em diversos momentos a autora parece misturar as duas definições ou relacioná-las.

Se Haruko Ichikawa tem ou não conhecimento na área, já é outra pauta, porém é obvio que ela adequa os termos na sua obra, e por mais que pareça estranho aos entendidos, funciona bem, conseguindo ser plausível dentro do universo de Houseki no Kuni.


3. Inclusões:

Em Houseki no Kuni as gemas carregam dentro de si microrganismos, denominados “inclusões”. Eles são responsáveis por absorver luz e transforma-la em energia, assim permitindo que as joias possam se mover. Os seres microscópicos também permitem que partes despedaçadas possam ser recolocadas, sendo um dos mecanismos que contribuem na perpetuidade das gemas.

Possivelmente seja um dos aspectos mais interessantes da obra, ajudando a entender o funcionamento das joias, pois ao que parece, cada gema possui tipos de inclusões diferentes. Infelizmente, o assunto é pouco aprofundado.

Contudo, o termo inclusões na realidade é completamente diferente do que é apresentado no trabalho de Ichikawa. Em mineralogia, inclusões são materiais (orgânicos ou inorgânicos) que estão integrados na estrutura cristalina de um mineral, podendo variar em forma, sendo sólida, líquida e até gasosa. Tampouco a expressão se associa aos microrganismos, já que não existe atividade microbiana dentro do arranjo dos minerais.

Novamente Haruko Ichikawa utiliza de liberdade criativa, e de certa maneira, torna as gemas mais próximas do ser humano, corroborando com fatos já apresentados na obra, além de criar certa familiaridade com o espectador.


4. O que seria Bort?

            
Bort.

Das joias mais conhecidas pela maioria, como diamante, jade e ametista, também existem aquelas desconhecidas, fosfofilita, cinábrio e padparadscha. No entanto, o que seria bort e por que a gema é referida como um diamante?

Bort é o nome genérico dado aos diamantes mal cristalizados e imperfeitos que não possuem qualidade gemológica, não estando aptos para tornarem-se joias. Esses minerais correspondem a quase 80% dos diamantes encontrados na crosta.

                       
Os diamantes imperfeitos, conhecidos como bort.

São características do bort sua opacidade, cor escura causada por impurezas e seu formato irregular.

5. As joias gêmeas:

     
As gêmeas Amethyst.

Dentre as diversas propriedades dos minerais está a macla ou geminação, que é o intercrescimento racional de dois ou mais cristais.

Intercrescimento corresponde a situação em que dois minerais que estão interligados devido a cristalização simultânea.

Cristais gêmeos são classificados com base na lei de macla, que define os planos ou eixos da geminação. As gêmeas Ametista são chamadas 84 e 33, referente ao ângulo que estão conectadas, 84’33” {8433}.

Leis de macla. P (parent mineral) & T (twin mineral).




6. Recuperando Padparadscha:

   
Padparadscha com seu torso defeituoso.

A personagem Padparadscha é mostrada em constaste estado de inconsciência, devido ao seu torso mal desenvolvido, sendo formado por vários buracos. Segundo Rutile, o rubi poderia ajudar na condição da Joia, fazendo que ela despertasse, já que o mineral é da mesma família.

Phos e Rutile coletam rubi, com finalidade de despertar Padparadscha. Capítulo 29, Volume 5. 

Como assim da mesma “família”?

A priori, padparadscha é uma rara variação de safira. Tanto esse mineral quanto o rubi são corindos (óxidos de alumínio). Por estarem na categoria dos óxidos compartilham o mesmo sistema cristalino,  são trigonais e possuem classe idêntica (escalenoédrico hexagonal).

Observando a similaridade entre os dois minerais, faz sentido substituir os espaços no torso de Padparadscha por rubi. Mesmo que funcione apenas temporariamente.


7. As joias e suas peculiaridades:

      

Em Houseki no Kuni é mencionada a existência de vinte e oito gemas, porém nem todas possuem características singulares como as que serão apresentadas a seguir. É evidente que as personagens criadas pela autora refletem propriedades das joias do mundo real.


7.1. Shinsha e o líquido prateado:
                                                           
A triste e solitária Cinnabar.
 

Shinsha, ou Cinnabar, possui a habilidade de manipular uma substância líquida, utilizando-a de maneira ofensiva ou defensiva. O líquido é extremamente perigoso, sendo danoso para as gemas e outros organismos, fazendo com que a Gema tenha uma vida isolada e reclusa. Entretanto, nunca foi esclarecido o que é o elemento liberado pela personagem.

Shinsha é a representação do cinábrio, sulfeto de mercúrio (HgS). O mineral pode conter microgotículas de mercúrio nativo (elemento puro), que é facilmente absorvido pela pele. 

Por estar associado ao mercúrio (Hg), sua manipulação é perigosa. O elemento é toxico e altamente danoso quando absorvido a longo prazo, por isso, sua mineração deve possuir medidas de segurança mais rígidas.

                   
O mineral cinábrio.


7.2. A rara condição de Antarcticite:

                                 
Antarcticite. Responsável pelas tarefas durante o inverno.

Durante o inverno as joias entram em estado de hibernação. Nessa época a personagem Antarcticite revela-se, devido a sua composição única, já que pode recristalizar sua estrutura apenas em baixas temperaturas. Na maior parte do ano, encontra-se na forma líquida.

Antarcticite ou hexahidrato de cloreto de cálcio, é um composto que intriga pesquisadores. Embora seja classificado como mineral halogenado, possue propriedade que não parecem ser de um mineral.

O cristal derrete em temperatura ambiente (25°C), tornando-se líquido em contato com a pele, em alguns minutos. A medida que a temperatura declina, a recristalização tem início. Quanto mais lento o resfriamento ocorrer, maiores e mais volumosos os cristais se tornam.


       
Cristalização de fragmento de antarcticita em placa metálica resfriada. 


7.3. A mudança de cor em Alexandrite:

Alexandrite pode ser considerada a acadêmica do grupo, sendo responsável pela pesquisa e catalogação dos tsukijin (lunários). Normalmente seu cabelo é de cor esverdeada, no entanto, ao se deparar com um lunário, sua cor muda, tornando-se avermelhado. Além da mudança de tonalidade, a joia entra em estado de frenesi, ficando irracional e enraivecida.                     

Alexandrite entrando em frenesi ao ver um lunário.

O mineral alexandrita possui a característica de mudar sua cor de acordo com o tipo de luz que incide sobre ela,  fenômeno conhecido por efeito alexandrita. Sob luz natural possui coloração esverdeada, já em luz incandescente tem cor roxa ou avermelhada. O fenômeno da troca de tom é devido à combinação de titânio, ferro e cromo causando intensa absorção de luz, captando comprimentos de onde e refletindo outros.          

O efeito alexandrita, caracterizado pela mudança de cor do mineral em fontes luminosas diferentes.

A visão humana é mais sensível a luz verde do que a luz vermelha.  O mineral parece esverdeado à luz do dia, já que todo o espectro de luz visível está presente. É avermelhado em luz incandescente, pois emite menos espectro verde e azul.

7.4. Dois em um:

De característica calma e tranquila, Ghost Quartz abriga em seu corpo outra personalidade totalmente oposta, Cairngorm. Ghost funciona como uma espécie de “concha” para esse outro ser.

             
Ghost Quartz

O quartzo fantasma é formado sobre cristais pré-existentes. Como o processo ocorre?

O quartzo original cessa seu desenvolvimento devido à ausência de sílica (SiO2). Durante o estado de repouso, um mineral secundário pode assentar sobre a estrutura cristalina original (no caso, o quartzo). Quando o SiO2 for reintroduzido na ordenação, em vez de formar um novo cristal separado, o que é mais comum, o elemento irá reformar sobre o quartzo já existente, prendendo o mineral sobre o arranjo original. O fenômeno cria um cristal harmônico caracterizado tanto pelo quartzo e pelo mineral adicional.                  

Quartzo com  hematita (minério de ferro) depositada em sua estrutura, causando o efeito "fantasma".



7.5. Watermelon e eletrocinese:

A personagem Watermelon é capaz de gerar eletricidade, utilizando a habilidade como ferramenta ofensiva na luta contra os tsukijin. A gema utiliza essa capacidade como recurso final, principalmente quando fica irritada. A carga elétrica gerada parece não ter efeito nas outras joias.

Watermelon liberando carga elétrica. Capítulo 43. Volume 6.

Os minerais do grupo da turmalina são do grupo dos silicatos, no caso das turmalinas-melancia, trata-se de um cristal de duas cores, frequentemente avermelhada internamente, com tons verdes na camada externa.            

Turmalina melancia, que recebe esse nome devido a sua coloração.  

As terminações dos cristais são assimétricas (hemimorfismo). Minerais dessa natureza são piezoelétricos, geram tensão elétrica em resposta a pressão mecânica. Também são piroelétricos, produzem temporariamente um potencial elétrico quando aquecidos.

Quando os cristais da turmalina são aquecidos, tornam-se carregados eletricamente, com polos de cargas diferentes em cada extremidade, semelhante a uma bateria. O fenômeno ocorre devido a mudança de temperatura, que modifica a posição dos átomos na estrutura cristalina.


8. Considerações finais:

Utilizar de preceitos científicos e teóricos em obras fantasiosas não representa nenhuma novidade, no entanto, penso que seja válido expor quais foram os embasamentos e inspirações utilizados, e como Haruko Ichikawa os aplicou em Houseki no Kuni.

Ichikawa utiliza de inventividade, ajustando termos e princípios para que possam encaixar de maneira crível em seu trabalho, tornando-o mais intrigante. Vale ressaltar que a autora já utilizou de artifícios semelhantes em Ichikawa Haruko Sakuhinshuu, que serviu como base para sua obra mais recente.



Quem se interessar, pode conferir o review do anime: Houseki no Kuni

Kanch0me


Kanch0me (Arthur Felipe Valença) é formado pela Federal Rural de Pernambuco em Biologia, além de técnico em informática. Atualmente é estudante de Licenciatura. Entusiasta da indústria cinematográfica e amante de animesmangásHQs e videogames.

Cargo: Escritor

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