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O Equilíbrio Artístico (Mise-en-Scène) | Artigo


Todo artista tem a obrigação de usar o seu aparato estético e artístico de alguma forma. Quando me refiro à “forma”, alguns podem confundir com formula, regra ou jeito certo. E não existe formula, regra ou jeito certo de usar o aparato artístico. Não importa a arte do qual discutimos, todas possuem uma vasta gama de possibilidades de impactar o público de diversas maneiras diferentes, logo, não pode existir uma regra exata de como o artista deve trabalhar ou como deve desenvolver o seu projeto artístico.

Nos animes, o artista principal – aquele que irá unir e evidenciar ao espectador a sua forma artística – é o diretor. O animador principal que tem obrigação de usar o aparato da animação japonesa de forma única em seus próprios trabalhos. O impacto de um anime vem da união de todos os fatores e possibilidades que existem como forma de animação, e a junção desses fatores será denominada por mim como Equilíbrio Artístico (ou mise-em-scène). O termo que será usado não importa, e sim o seu efeito.

É muito normal em algumas analises que assisto no Youtube ou leio em sites e blogs, pessoas analisando os elementos de uma obra de arte de forma isolada. A pessoa divide tais elementos dessa obra em partes separadas e determina um valor para cada uma. “A animação está assim... O roteiro é desse jeito... Os personagens fazem isso...” A pessoa tem o desserviço de transformar uma obra de arte em um simples resumo técnico que abrange apenas a superfície daquela obra, e em alguns casos, para dizer que não é superficial, propõe uma interpretação limitadora como defesa/ou não para tentar ir além do que essa obra quer dizer. (Essa discussão sobre a interpretação fica para outra hora). Em resumo, a pessoa define um conceito de qualidade concreto para todos esses elementos e não pensa em um efeito deles de forma conjunta.

É importante deixar claro que: esses elementos são sim importantes e eles irão nos impactar, porém, eles não funcionam de forma isolada. Eles não existem para seguir o seu modelo de qualidade perfeito que diz o que o anime deve fazer.

 

Yuru Camp - 2018 - 2021

A obra proporciona vários momentos muito prazerosos, mas com impactos distintos. Existe um contraste entre um estado meditativo e isolado com uma “inquietação” entre as personagens principais.

A primeira forma que se enquadra nesse contraste é essa mais “meditativa”. Ele dá uma ênfase muito forte nos processos que devem ser realizados ao se acampar. Como uma espécie de concentração e meditação. O diretor faz escolhas muito boas que reforçam muito essa ideia. Enquanto que na maior parte do tempo os cenários estão estáticos, podemos ver as personagens passeando por esses espaços ou admirando momentos isolados. Essa forma de não movimentar tanto as coisas dá um certo tempo para o espectador contemplar os momentos junto dos personagens.

A outra forma é essa mais inquieta. Nesse caso, o anime já é encenado com um tom mais enérgico do que aquele mais frio e meditativo que disse anteriormente. Esses momentos são proporcionados pela união das personagens ao acamparem juntas, mas principalmente pela personagem da Nadeshiko (interpretada por Yumiri Hanamori). Ela é o oposto da Rin em praticamente tudo. Des de o modo como ela fala ao seu design mais chamativo.


O que eu chamo de Equilíbrio Artístico é exatamente essa ideia principal que irá amarrar todo o argumento da minha crítica sobre a obra. Nesse caso, qual é o equilíbrio, o argumento e o meu ponto de partida inicial de Yuru Camp? É essa ideia de uma meditação em contraste com uma inquietação. Todo o argumento e reflexão que eu irei defender e desenvolver sobre o anime irá partir desta ideia inicial. Eu não faço comentários técnicos e aleatórios sobre Yuru Camp. Todos os argumentos que eu levanto estarão dentro de um único princípio que irão reforçar a minha ideia sobre a obra.

 

SK∞ - 2021

A melhor coisa de SK∞ é como ele assume um total desapego da lógica e está sempre deformando elementos reais ao seu favor.

É genial a forma como a diretora Hiroko Utsumi consegue unir muito bem todos os exageros convencionais de alguns animes como se fossem algo natural. Desde a forma como os personagens se expressam com esse tom de voz mais agitado e estridente, as cores muito chamativas do figurino, até o jeito como as corridas são encenadas com uma agilidade ultra frenética que distorce até à física das cenas.

É um anime que se passa na “realidade” e que tem um tema real (que é o Skateboarding). Entretanto, a estilização muito forte e evidente o transforma em um anime de ação – quase de super-heróis com super poderes e habilidades incríveis que vão muito além da nossa realidade. É um trabalho que não tem medo de se assumir essa abordagem mais estranha.

A forma como os eventos do anime progridem, esses, que servem para a trama andar de alguma forma não estão interessados em desenvolver muitas coisas (não diretamente). Parece que tudo o que acontece tem objetivo e intenção de levar os personagens a correr. O anime tem sempre uma relação muito direta e objetiva com a ação.

Tudo o que surge de impressionante nessa estilização mais exagerada, funciona de forma muito assumida e natural.


Com SK∞ é a mesma coisa. Eu defino uma ideia inicial do anime ter um desapego pela lógica e pela realidade, e desenvolvo a minha crítica a partir deste argumento.

 

Nesses dois pequenos comentários que eu fiz sobre Yuru Camp e SK∞, eu trouxe a forma desses trabalhos, evidenciando alguns aspectos técnicos e narrativos (claramente, na minha experiência) que contribuíram para que ambos os animes funcionassem de algum modo. (Ambas as criticas estão completas em Casa dos Reviewers)

Os dois possuem escolhas de linguagem muito opostas, e com efeitos expressivos diferentes, mas que funcionam dentro de um equilíbrio próprio. A interpretação dos atores de voz, a direção de arte, os planos, a animação e quaisquer outros aspectos que compõe um anime não estão sozinhos, ambos afetam uns aos outros enquanto assistimos. Por isso eu sempre me posiciono a favor de que o trabalho do diretor é o mais importante em uma produção (seja ela em um anime, filme, teatro etc.). Ele/ela será responsável por organizar todo o aparato artístico da obra em uma unidade, em um efeito, em um Equilíbrio Artístico. Eu também falo bastante disso em outro texto meu Todo anime é uma obra original!


O objetivo de todos os comentários sobre a arte deve ser, hoje, o de tornar as obras de arte – e, por analogia, nossa própria experiência – mais, e não menos, reais para nós. A função da crítica deve ser a de mostrar como ela é o que é, e mesmo é isso o que ela é, e não o que ela significa.

Susan Sontag, 1964.

 

Quando um anime não funciona; quando ele não tem um impacto; quando ele não tem uma cara própria, é porque ele não possui um equilíbrio bem definido. É quando as escolhas de linguagem desse anime não conversam juntas e não impactam positivamente o espectador.

 

MushokuTensei: Isekai Ittara Honki Dasu - 2021

Mushoku Tensei tenta trabalhar ao mesmo tempo, temas adultos e fantasiosos com transparência de forma ambígua, mas a importância dos mesmos se perde quase que completamente por conflitar com uma visão infantil das ações doentias do personagem.

São criadas diversas pequenas situações que nos aproximam desse universo e dos personagens de forma mais intima. Como quando o Rudeus pega a sua professora de magia Roxy Migurdia se masturbando no corredor, ou os barulhos de sexo entre os pais do personagem. A animação também passeia pelo fantástico, quer sempre surpreender não só no lado fantasioso, mas também nos mínimos detalhes. São pequenos detalhes, mas que fazem diferença nessa lógica mais realista e fantasiosa.

Eu não julgo os atos do personagem (que obviamente, são hediondos e reprováveis na vida real), pois já são situações criadas para que nós realmente não nos apaguemos a ele, o que funciona em pouquíssimos momentos. O anime tem uma noção de que as ações do personagem são incorretas, mas por estabelecer um olhar intimo com o personagem, o espectador é levado junto das suas ações. E ao infantilizar tais ações, até o tema principal do anime sobre uma possível ambiguidade perde muita força nessa questão.

 

A minha ideia propõe um conflito entre essa ambiguidade proposital das ações do personagem, que são falhas ao deixar o espectador íntimo de tais atos. As escolhas de linguagem do diretor Hirofumi Ogura juntas, sobre o tema do anime, causam um impacto que não crítica o seu personagem, mas romantiza e infantiliza os seus atos.

Não quer dizer que nenhum outro anime possa usar os mesmos apelos de linguagem usados em Mushoku Tensei, mas quer dizer que considerando os eventos do anime e a forma como foram concretizados visualmente, eles não funcionaram de forma equilibrada. Ou até funcionam, mas de forma que não tenha agradado positivamente.

 

Um outro ponto importante que é preciso tocar quando se trata de criticar uma obra, é ter em mente que a sua visão não é uma verdade sobre essa obra. Propor uma ideia sobre um trabalho artístico não é impor essa ideia ao seu leitor ou ouvinte, e sim levantar e refletir sobre tal ideia. Eu não impus a minha ideia e visão de Yuru Camp, SK∞ e Mushoku Tensei ao leitor, eu evidenciei e argumentei sobre tais ideias.

Existem várias críticas e opiniões que eu leio pela internet que eu não concordo, mas que eu aprecio. Você não precisa concordar com à pessoa para apreciar a crítica da mesma. Uma boa crítica não é uma crítica que entendeu o anime ou que chegou na verdade daquela obra. Uma boa crítica é uma crítica bem argumentada, que dá bons exemplos, que relaciona o aparato artístico daquele trabalho com a ideia principal de quem está criticando.

 

Efeito Narrativo e Sensorial

 

Para tentar deixar mais clara essa ideia de que um anime não tem o mesmo efeito ou impacto em todas as pessoas, e como isso deve ser levado em consideração ao escrever uma crítica, eu vou relacionar alguns trabalhos mais específicos que buscam um impacto mais narrativo e sensorial no espectador, a parir das escolhas de linguagem dos seus artistas.

 

Narrativos

Os trabalhos mais narrativos são aqueles que irão propor um sentido e impacto expressivo a partir da continuidade dos seus eventos.

Odd Taxi 2021 é um anime que prioriza uma continuidade narrativa. É um trabalho que viaja por diversos núcleos de personagens diferentes, e que ao longo do tempo, vão se conectando com o andar dos episódios. Os acontecimentos e escolhas dos personagens em Odd Taxi têm um sentido direto com o que acontece na história.

A encenação do diretor Baku Kinoshita é muito formal e cinematográfica. Os planos e enquadramentos tem essa qualidade bem calculada. Os personagens e objetos importantes estão sempre muito bem localizados nos cenários e espaços. Essa forma de posicionar tudo de forma objetiva e direta é o que prende a atenção do espectador a narrativa.

Todo esse formalismo é bem usado para guiar o olhar do espectador ao que o anime deseja. Nada é pensado de forma aleatória, e a maioria das cenas tem um sentido. Ele prende quem assisti, não porque o roteiro foi bem escrito, e sim, porque o anime é bem encenado. E assim, até o final, ele vai revelando camadas e detalhes da história enquanto prende a atenção de quem assiste.

O mesmo acontece em Great Pretender 2020. Também é um trabalho muito formal (e até mais estilado que Odd Taxi), e que também prende a nossa atenção.

 

Sensorial

Os trabalhos mais sensoriais vão ter uma continuidade expressiva direta com as imagens, e não tanto com os eventos narrativos que acontecem.

Yojouhan Shinwa Taikei (The Tatami Galaxy) 2010 prioriza um aspecto mais sensorial e até experimental em suas cenas. A continuidade de várias das imagens propostas por Masaaki Yuasa tem um efeito sensorial e simbólico muito característico. Algumas imagens que vão surgindo não tem um efeito direto com a história, e sim com uma lógica de efeitos próprios. A expressividade surge pela dinâmica da fala dos personagens (que é muito veloz) e das imagens que vem surgindo muito rápido. Em alguns momentos, é até difícil de entender o que os personagens estão dizendo. Tudo isso combinado causa um efeito meio hipnotizante no espectador.


Em seu melhor trabalho, na minha opinião, Mind Game 2004 também segue essa mesma lógica que busca explorar mais as sensações do espectador, e menos o que acontece na história.

Serial Experiments Lain 1998 é um outro caso de um anime que prioriza mais os sentidos e feitos que serão causados no espectador, e não tanto pelos seus acontecimentos narrativos.

(Vou deixar para falar mais de Lain em outro texto sobre outro assunto).

 

Dos poucos episódios que assisti de Stand Alone Complex 2002, dá para notar facilmente que também é um anime que prioriza mais uma continuidade narrativa. Esse é um dos motivos, pelo qual acredito eu, que muitos o prefiram, ao invés da versão dirigida por Mamoru Oshii.

Ghost in the Shell 1995 é um trabalho que explora a linguagem de forma mais sensorial que SAC, e isso vem dá forma como o Oshii prefere trabalhar. O trabalho do diretor sempre parte de uma narrativa, mas que termina explorando uma lógica de efeitos. Se analisarmos sua obra mais recente, não é muito diferente. Vlad Love 2021 é um anime que parte de eventos narrativos, mas que tem uma progressão mais experimental e simbólica, do que pelos eventos da história em si. (Acho até que por esse motivo, não é um trabalho tão apreciado).

Hoje em dia, ainda tem muitas pessoas que ignoram o sentimento em relação ao que assistem, e focam apenas na evolução dos eventos.

 

Eu dei esses exemplos de animes que procuram mais uma relação narrativa e outros que focam mais em uma lógica sensorial, mas no final, ambos irão trabalhar com alguma das duas abordagens.

Em Odd Taxi, mesmo a progressão dos eventos tendo um foco mais narrativo, o anime também transmite e trabalha com os sentimentos do espectador. No episódio 12, quando o personagem do Hiroshi Odokawa deixa cair a borracha (que é um objeto extremante importante no anime), ela cai com um certo peso mais expressivo do que o normal. É uma cena que dá um foco muito significante para essa borracha naquele exato momento, e isso causa um sentimento muito expressivo. Um sentimento que tem sim, um sentido direto com a história, mas também dado pela forma como o diretor tratou tal objeto na obra e naquela cena especifica, ganha uma importância muito maior.

Em Tatami Galaxy, Mind Game ou em qualquer outro anime mais experimental e sensorial, também vão trabalhar e partir de uma lógica narrativa. A premissa pode sim ser usada como ponto de partida para essa lógica de efeitos e sensações. Em Lain, o que dispara todos os eventos é um acontecimento narrativo. (O suicídio da Chisa Yomoda).

Então, nós teremos animes que vão trabalhar mais narrativamente ou sensorialmente, mas sempre vão explorar um dos dois lados.

 

Também teremos aqueles que irão conciliar ambos os efeitos de forma muito equilibrada. Os exemplos que eu dei anteriormente de Yuru Camp e SK∞ demonstram muito bem essa possibilidade. Os acontecimentos narrativos por si só têm um efeito bem sensorial no espectador. São ambas obras que de formas muito distintas, trabalham com seus acontecimentos principais de modo muito expressivo. Isso é até mais sutil em Yuru Camp.

O mais importante é mostrar que independente do anime que você assista, o sentimento sempre vai surgir de algum lugar. Nenhum anime bom vive só de roteiro bem escrito e animação bem feita. Todo anime desperta um sentimento especifico em quem assiste. Você pode não notar e ao mesmo tempo não entender o porquê, mas ele vai existir em algum lugar.

Um anime ruim não vai te impactar. Sempre vai ter aquela obra que você termina de assistir, e sente que não teve impacto nenhum. Ou no meu caso de Mushoku Tensei, um anime que usa a linguagem de forma que me causa sentimentos que não conversam com o que acontece narrativamente.

Uma obra pode ter uma premissa interessante, uma animação incrível, uma trilha linda ou um tema e mensagem complexo, mas isso sozinho não faz o anime ser bom.

Por esse motivo, não dá para ignorar o sentimento ao assistir um anime, filme ou série ao se escrever uma crítica. Criticar é descrever e refletir uma visão sobre o impacto da obra, e não impor essa visão a ninguém.

Não apenas os exemplos que usei aqui, mas eu tenho certeza que durante essa leitura, você se identificou ou lembrou de algum outro anime que te causou sentimentos com esses atributos que descrevi acima. Se existe alguma obra que te despertou um sentimento muito forte que vai além do que os eventos narrativos contam, por favor, comente aqui em baixo qual obra se encaixaria nessa característica. Ou o oposto também. As possibilidades são infinitas.

 

Espero que você também comece a perceber mais essas sutilezas e abordagens diferentes em cada obra que assistir a partir de agora.

Eu abri espaço nesse texto para a possibilidade de discutir vários assuntos mais específicos, mas que tornariam o texto muito extenso. Como moral, realismo, entendimento e interpretação. Qualquer sugestão ou ideia de tema também é bem-vinda.




Henrique Neves é fundador, administrador e escritor do site Casa dos ReviewersFormado na faculdade de Jogos Digitais da Universidade Nove de Julho e estudante ativo (autônomo) de linguagem cinematográfica e animação.

Cargo: Administrador/Escritor

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